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Dor, angústia, sofrimento. Sentimentos que dominaram a Grande Messejana na madrugada daquele dia 12 de novembro. De todos os moradores do bairro, sete sentiram mais de perto a grandiosidade da violência que fora demonstrada ali. Na denúncia feita pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), foram denominados “Vítimas Não Fatais”. Apesar da não-morte, as vítimas sofreram torturas físicas e psicológicas na noite da Chacina.

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Entre as 240 pessoas ouvidas na investigação realizada pela Delegacia de Assuntos Internos (DAI) da Controladoria Geral da Disciplina (CGD), que culminou na denúncia do MPCE, as sete vítimas foram identificadas. Em trechos da denúncia, lê-se detalhes das situações vivenciadas pelos sobreviventes: “(...) submetido a intenso sofrimento mental por pessoas que atuavam em comunhão de esforços, com emprego de grave ameaça - incluindo a restrição de liberdade de locomoção -, as quais visavam obter informações sobre o paradeiro de terceiras pessoas (...)”.

 

A circunstância se repetiu em outros momentos. Algumas das vítimas foram levadas nos carros com os assassinos. Outras tiveram suas residências invadidas e foram tiradas de dentro delas. Na maioria das cenas, o propósito daqueles que chegavam com armas em punho era o mesmo: identificar possíveis envolvidos na morte do policial Serpa. O socorro médico rápido impediu a morte de algumas pessoas. Outras não sobreviveram para contar essa história.

 

As vítimas foram ouvidas nas duas primeiras audiências do caso da Chacina da Messejana. Sobreviveram à violência. E não apenas naquela noite. Os moradores das periferias dos grandes centros urbanos, em especial os jovens, podem ser considerados sobreviventes todos os dias. Resistem, e sobrevivem à violência, à precariedade, ao estigma social e, principalmente, ao preconceito diário.

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A revolta e o sentimento de medo e insegurança ainda paira, motivo pelo qual, neste relato, os nomes foram modificados e os locais dos fatos ocultados. A vida de várias comunidades e famílias foi brutalmente alterada em uma noite. Mas essa história deixa em entrelinhas o legado de quem vive assaltado pelo preconceito.

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SONO INTERROMPIDO

 

É mais uma noite de calor em Fortaleza. Mas naquela hora, o mormaço já se misturava com a frieza da madrugada. Depois de um dia cansativo de trabalho, Júlio dorme tranquilamente em sua cama quando escuta a porta rangendo e tremendo. Não sabe que horas são, mas a escuridão lá fora anuncia que ainda está longe de amanhecer. O barulho se confunde ao som do disparo de armas de fogo ao longe e desperta o rapaz. Alguém está tentando entrar. "Eu me acordei, só que eu não me levantei, de jeito nenhum. Eu fiquei", conta. Ficou com muita dor de barriga porque estava com medo e queria urinar, mas não conseguia se levantar para ir ao banheiro.

 

"Fica deitado, fica deitado". Era o pensamento mais forte de Júlio em meio a tantos que o aterrorizavam naquela hora, mesmo achando que poderia morrer. A dor no abdômen aumentava enquanto lutava para pensar em alguma alternativa, mas não queria fazer movimentos bruscos. Depois de três minutos que pareceram durar três horas, o estalar das dobradiças da porta cessa. Com certeza não dormiria as primeiras horas do dia 12 de novembro.

 

Revira-se em seu leito para tentar dormir e esquecer o medo, mas os esforços são em vão. O máximo que consegue é fechar os olhos. Talvez tivesse cochilado um ou dois minutos quando pessoas começaram a conversar e falar alto no meio da rua. "Não, tá acontecendo que a polícia tá invadindo a casa dos outros e acabaram de dar na amiga da gente". Foi a primeira frase que conseguiu ouvir por inteiro. Reconheceu que era a voz de uma amiga e saiu de casa. A primeira coisa que pergunta é se eles ainda estão por lá, recebendo em seguida um inseguro e pálido "não".

 

Enquanto relata para as amigas o que tinha acontecido na porta de casa, os olhos pesados enxergam mais alguém vindo de longe. É outra colega que chega para dar a notícia da morte de dois jovens. Parte do grupo se manifesta para sair e descobrir o que houve, mas Júlio prefere ficar encostado no muro. Outras aglomerações se juntam na frente das portas de várias casas. Mas as notícias ruins não param, e as colegas retornam dizendo que Silvio e Helton tinham morrido. No final de semana jogou futebol com eles, e já planejavam o próximo encontro - que nunca mais iria acontecer.

 

Enquanto algumas lágrimas se misturavam com a vista cansada e a dor de barriga, que tinha voltado, homens encapuzados surgem depois da esquina da casa de Júlio. Um deles grita: "Entra pra dentro p****"! Desengonçadamente ele acata a ordem, mas não sem antes conseguir ver dois jovens serem assassinados. As pernas trêmulas mal permitem que ele fique de pé. Tenta trancar a porta, mas as chaves caem das mãos dele. Consegue lacrar a fechadura quando tentam novamente arrombar a porta de casa. Os gritos e palavras que ele queria dizer naquela hora ficam engasgados, e Júlio não dá nem um murmúrio sequer.

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MADRUGADA FRIA

 

O dia 12 amanhece com as marcas de uma noite inimaginável. Enquanto Júlio tenta se recompor para conseguir ir trabalhar, o cenário deixado pela violência atinge os mais experientes adultos, as mais frágeis crianças. Muitos se preparam para deixar suas casas, pelo menos provisoriamente, temendo uma nova onda de ataques. Outros, que não tem para onde ir, rezam e lançam olhares preocupados às esquinas.

 

Vizinhos comentam que na noite anterior uma menina de no máximo 10 anos teve uma arma apontada na cabeça. Estava em casa e foi tirada dos braços da mãe para coagir o pai a falar alguma coisa. A família foi uma das poucas escolhidas para continuar a vida sem perder alguém.

 

O Batalhão Raio, grupo da Polícia Militar, aparece na comunidade. Um dos policiais que dirigia uma moto chega perto de um rapaz sentado na esquina e grita: “Entra pra dentro! Já esqueceu das mortes de ontem? Quer ser a próxima vítima”? Do outro lado da rua, um garoto chama pela mãe num brado trêmulo. Lá fora, alguns militares zombam: “Chama logo pela mãe. Tá com medo de morrer igual os outros”.

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HUMILHAÇÃO E ABUSO

 

Cenas como essa se repetem nas semanas posteriores à chacina. Jornais ainda não sabem o que aconteceu ao certo, e investigadores tentam encontrar pistas para descobrir os assassinos. César e Mateus voltam da escola e param numa lanchonete porque é dia de comprar pastel para merendar. O bate-papo sobre futebol e games obscurece, por ora, a lembrança recente da madrugada sangrenta de algumas semanas atrás.

 

Tudo vem à memória outra vez quando os meninos são abordados por policiais. “Cadê as drogas?”, pergunta um dos agentes para Mateus, jogando os pastéis que César segurava no chão. “Eu não mexo com isso”, respondeu Mateus com calma. O policial retrucou com rispidez: “Mexe sim, que eu vi tu correndo quando a viatura passou na esquina mais cedo”. O policial empurrou o jovem e começou a pisar no dedo dele. Urrando de dor, tenta contar o que fazia: “Não senhor… estava no campo jogando de bola… como todos os dias eu faço”. O militar pisava com mais força nos dedos do jovem, que repetia com veemência a sua versão da história. “Entrega logo as drogas e os cabeças! Eu sei que tu é um dos aviõezinhos que faz as correrias e sai entregando os pacotes!”.  

 

César, que nada podia fazer enquanto o amigo era torturado, ficava com a cabeça baixa e tremia. Se ousasse falar alguma coisa, poderia ser esmurrado. Lembrou do cunhado, ex-presidiário que começou a trabalhar dignamente, mas que vivia sendo ameaçado. Homens chegavam nas viaturas e diziam que ele tinha matado um policial. Uma vez, mesmo após a família mostrar o alvará de soltura, foi espancado dentro de casa. As imagens violentas passavam pela cabeça enquanto Mateus sofria no chão.

 

Depois de repetir inúmeras vezes que não tinha envolvimento com drogas, Mateus e o amigo foram empurrados e liberados, pelo menos por ora. Não era a primeira vez - e nem a última - em que humilhações assim aconteciam.

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SER HUMANO

 

Os sobreviventes da periferia enfrentaram a mais difícil das batalhas naquele dia. Mas depois, rixas egoístas e sem fundamento que impediam jovens de um conjunto de andarem em outros começaram a cair por terra. “Antes, a gente tinha medo, por causa das brigas de gangue, mesmo sem fazer parte de nenhuma”, conta Júlio. Mateus completa: “Pois é, antes a gente não passava da avenida. E hoje não, tudo tá diferente”.

 

Júlio, assim como Mateus, César e tantos outros que vivem na favela sabem: “Eles vieram pra cá porque sabem que aqui só tem negro, pobre, e sabiam que não ia dar em nada pra eles. Por que eles não foram em algum bairro nobre?”.


Mas o que fica é a necessidade da luta e a esperança em uma força de segurança melhor. Cada um tem orgulho de ser favelado, ser da periferia. Começa aí. Eles sabem que ainda existem bons policiais, e que estes podem fazer a diferença, se quiserem. São poucos os exemplos que eles têm pra contar, mas é no que acreditam. É o velho, mas sempre novo dos ensinamentos, que Júlio guarda com ardor dentro de si: “Nós somos seres humanos, né… a gente deve amar uns aos outros”.

Vive, sobrevive e vive

Gabriela Vieira e Paulo Cardoso
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