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12 de novembro de 2015. Quinta-feira. A notícia de onze homens assassinados na Grande Messejana dividiu espaço nas rodas de conversa com a série de atentados em Paris. Tantos homicídios em menos de 24 horas poderiam ter sido apenas parte do enredo de um grande filme de ação. Uma película em que centenas de figurantes são postos em cena apenas para morrer em chacinas sangrentas.

Em meio a tantos nomes creditados ao final do filme, os figurantes perdem-se em números e suas participações são resumidas a Morto nº1, Morto nº2 e Morto nº87. Entretanto, cada um deles viveu seu próprio filme, ainda que não tenha sido exibido nos cinemas.

Morto nº9

PARTE I - INFÂNCIA        

 

No dia 28 de agosto de 1997, no Gonzaguinha de Messejana, Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho nasceu após 7 meses e uma semana de gestação. Apressado desde o nascimento. Filho de Catarina Ferreira Cavalcante e Pedro Alcântara Nascimento, Pedro veio ao mundo na mesma data que o avô materno, sendo o segundo dos quatro filhos do casal que, em 2016, eram: Vilemar Neto, 18, Lucas Vinícius, 17, e Luiza Cavalcante, 15.

 

Devido à influência dos dois irmãos mais velhos, Luiziane Cavalcante (meia-irmã de Pedro, por parte de mãe) e Vilemar Neto, não demorou para que Pedro se rendesse ao sabor dos quitutes vendidos pelo vizinho, tais como batatinhas fritas e pastéis. Por mais que Catarina tentasse evitar que os filhos comessem tantas guloseimas, sempre existia alguém para oferecer esses “agrados” às crianças.

 

Quando Pedro tinha um ano de idade, a irmã mais velha, Luiziane, tratou de pegar uma cédula de um real e contou ao menino que o dinheiro era para comprar os pastéis do vizinho. Luiziane passeava pela casa com a nota de um real nas mãos e não tardou para que Pedro desse seus primeiros passos em direção ao dinheiro que a irmã carregava.

 

Entretanto, foi também o gosto pelas frituras que fez com que Pedro parasse de andar e falar, após completar um ano e um mês de idade. Catarina colocou uma panela de óleo sobre o fogão para preparar uma das paixões culinárias dos filhos: batata frita. Rápido como um relâmpago, o pequeno Pedro agarrou-se às pernas da mãe e gritou de dor. Cerca de três colheres de óleo quente caíram sobre as costas do menino, causando não marcas físicas, mas psicológicas. Um trauma que apenas foi superado após oito meses de sessões com uma psicóloga. Depois do ocorrido, até hoje, Catarina utiliza para frituras somente as bocas de trás do fogão.

 

Apesar do acidente com a panela de óleo quente, Pedro passava o tempo batucando em panelas vazias buscando reproduzir os sons escutados na Igreja Adventista que frequentava. Foi a partir das batidas nas panelas que os irmãos Pedro e Neto descobriram o apreço e o talento que tinham para a produção musical.

 

Além do gosto pela música, Pedro demonstrava um enorme carinho por animais. Levava para casa uma série de bichos que encontrava na rua, transformando o lugar em um verdadeiro zoológico, para o desespero dos pais, que passaram a controlar a quantidade de animais permitida na casa.

 

Aos dez anos de idade, o filho já ajudava a mãe no trabalho, em um quiosque de utensílios para eletrodomésticos no Mercado de Messejana. Lá, não era incomum surgir pequenos filhotes de gatos ronronando pelas cadeiras das lanchonetes. O menino não resistiu a um desses felinos e o levou escondido para casa, mesmo já tendo um gato de estimação. Foi quando o pai perdeu a paciência e deu início a uma discussão com o garoto que, embora quisesse ter os bichanos por perto, não prestava os cuidados necessários.

 

Ao notar a sujeira que o novo gato da casa estava fazendo, Pedro, o pai, tratou de pegar a chinela e bater no chão para espantar o animalzinho. Indignado, Pedrinho retrucou: “É, se arma pra bater porque é um bichinho desse tamanho. Vá bater em alguém do seu tamanho”. O tom de voz de Pedro incomodou  Catarina que, ao ver o marido deitado e calado numa rede, questionou: “Tu não tá vendo isso não, Pedro? Esse menino desse tamanho tá te desafiando. Quando ele crescer, te dobra no meio. Isso não é certo!” Pedrinho seguiu em direção ao quarto, já prevendo o que viria a seguir. “Tu não vai dar uma chinelada nele, por esse atrevimento?” –  Catarina continuou a questionar o marido.

 

Mesmo hesitante, o pai foi até o quarto do filho e lhe deu duas palmadas. Embora seja um homem fechado e não muito carinhoso, Pedro sempre teve uma boa relação com os filhos e, nesse dia, passou a noite chorando por ter batido no garoto: foi a primeira e última vez. O filho mais novo do casal, Lucas, costuma se gabar: “o pai nunca me bateu”, ao que Catarina retruca com “é por isso que você é assim”, referindo-se ao jeito um tanto rebelde do garoto.

 

Dona Catarina e Seu Pedro passavam o dia trabalhando no Mercado de Messejana, portanto, desde cedo buscaram ocupar os filhos com atividades fora da escola. As duas meninas, Luiziane e Luiza, frequentaram aulas de dança. Os três meninos fizeram parte do grupo de desbravadores da Igreja Adventista de 2005 até 2010, quando se mudaram da Messejana para o Curió.

 

Durante este período, os garotos estavam fascinados por lan houses e, na época, “existia uma lan house em cada esquina”, observa Dona Catarina. Diariamente, os três irmãos percorriam de ônibus, após a escola, o trajeto para a casa da avó em Messejana. Mas a febre das lan houses fez com que os garotos passassem a realizar alterações no caminho.

 

Não demorou para que os vizinhos passassem a comentar com Dona Catarina sobre a nova rota traçada pelas crianças. Ao descobrir que os três não estavam cumprindo o acordo, Dona Catarina questionou os meninos sobre o ocorrido. Pedro e Neto negaram, entretanto, Lucas, que nunca soube mentir, trouxe a verdade à tona: “mãe, a gente foi a pé porque a gente foi pra lan house.”

 

Como castigo, Dona Catarina retirou os filhos da equipe de desbravadores da Igreja Adventista. A decisão, no entanto, deixou a mãe um pouco arrependida. Pedro e os irmãos ficaram solitários, brincando apenas entre eles mesmos. Mas o contratempo foi passageiro. Comunicativos e amigáveis como eram, os meninos logo passaram a frequentar um centro de atividades na vizinhança, conquistando novos colegas e desenvolvendo gosto por uma nova ocupação: a capoeira.

Parte II - Adolescência

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Pedro, Neto e Lucas eram tidos quase como trigêmeos, tamanha a semelhança física e união, apesar das eventuais e clássicas brigas de irmãos. Como tinham idades muito próximas, a mãe buscava sempre presentear os três meninos com as mesmas coisas: três camisas iguais, mudando somente a cor, por exemplo, para não gerar nenhuma confusão. Mesmo assim, os filhos não se davam por satisfeitos com as cores que recebiam e acabavam trocando as blusas entre si.

 

Luiza, a caçula da família, também não ficava de fora das discussões com os irmãos: “arengava” por “pacotes de xilito” e por atenção. Apesar de tudo, era o verdadeiro xodó de Pedro, que estava sempre buscando dar bons conselhos à garota, mas sem brigar. Apesar do ciúme e da superproteção que os irmãos costumavam ter para com a mais nova, foi no 17º aniversário de Pedro, em 2015, que Luiza (15 anos) deu à luz a seu primeiro filho, Arthur. A relação de Pedro com o sobrinho era de extremo cuidado. Na convivência com a criança, tirava brincadeiras que sempre arrancavam o riso frouxo do pequeno Arthur.

 

Pedro também era extremamente apegado a Neto, especialmente após ingressar, em 2013, na banda da Escola Professora Terezinha Ferreira Parente, a Fanfarra, onde o irmão mais velho era instrutor. Os dois brigaram somente uma vez e até hoje Dona Catarina acha graça da situação: Pedro estava interessado em uma moça, Isabele. Passou um bom tempo “paquerando” com ela, até o dia em que Neto também passou a se interessar pela garota e “tomou a frente”.

 

Em 2014, Neto adoeceu. Tomado aos poucos por fortes dores corporais, o irmão de Pedro foi diagnosticado com câncer no testículo. Após o diagnóstico do irmão, Pedro já não estava presente nas aulas da escola com tanta frequência. Perante à situação na qual a família se encontrava, o garoto dedicou sua rotina aos cuidados necessários para a cura de Neto e o tratamento do pai, que enfrenta problemas cardíacos. Internado em fevereiro de 2015, o filho mais velho de Dona Catarina parou de andar em março e em seguida perdeu a visão, vindo a falecer no dia 5 de junho de 2015, aos 18 anos e 9 meses. Diante do acontecido e da proximidade existente entre os dois, Pedro passou a dedicar a música “Ninguém podia prever”, de Lucas Lucco, para o irmão.

 

Neto deixou para trás sonhos, sua noiva e não chegou a conhecer o sobrinho, filho de Luiza. Com o passar do tempo, Dona Catarina atenta para os detalhes da criança recém-chegada à família: os traços de Arthur lembram, cada vez mais, o filho perdido. “Além de levar, ainda manda uma cópia?” Catarina questiona a coincidência do destino, com bom humor e olhos marejados.

 

No dia das mães de 2014, a família já havia enfrentado uma grande perda: a morte da tia de Catarina, que sempre a teve como mãe e era quem os filhos chamavam de avó. A mesma avó que cuidava dos garotos nas tardes após a escola, enquanto Dona Catarina e Seu Pedro trabalhavam. Apesar da emoção causada por essas duas mortes, a mulher afirma não ter chorado. Não conseguiu.

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Eu não vou negar, tive um comportamento frio. Mas uma vez eu escutei que a dor maior é daquele que não chora. Você não vai me ver agarrada num caixão chorando feito uma louca. Eu posso estar enganada, mas Isso aí, pra mim, é consciência pesada. Eu fiz o que pude pelos meus filhos e pela minha mãe.

–  Catarina Cavalcante

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Após a morte de Neto, Pedro não parava em casa. Para cada canto que olhava, lembrava do irmão morto. Catarina perguntava se ele achava que eles deviam se mudar, mas Pedro retrucava “só saio daqui morto”. Apesar de ter se distanciado dos estudos, o jovem continuava frequentando a escola para ensaios, tornando-se indispensável para a banda. Segundo os amigos, ele dominava todos os instrumentos, mas tinha o tarol, que ele mesmo montou, como sua maior especialidade.

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Ele sabia todos os instrumentos. Ele inventava toques para nós, era o cérebro da banda.

– Joel Pinheiro, membro da Fanfarra

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Pedro tinha uma boa relação com os colegas da banda. Joel, hoje um dos instrutores, conviveu intensamente com o garoto e admira o quão tranquilizante a sua companhia era, tornando situações difíceis menos complicadas. “Vai dar certo”, Pedro repetia diante de algum problema.

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Uma vez fomos para uma apresentação do prefeito Roberto Cláudio. Eu fui no comando da banda, mas não estava sabendo muito bem. Estava muito estressado. (...) Quando ele chegou, tentou me acalmar. A gente brigou um pouco. Eu achei isso engraçado porque ele estava rindo do meu estresse, pra mim isso foi marcante.

– Joel Pinheiro

       

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Além de dedicar-se à música, Pedro também sonhava com o futuro. O jovem de 17 anos almejava realizar o concurso da Polícia Militar do Ceará no ano de 2016. “O dinheiro é bom e a farda é bonita”, afirmava diante da relutância da mãe para com a possível carreira profissional do filho. “Eu prefiro que você seja gari do que policial. Quero uma profissão que eu saiba que você vai voltar pra casa”, insistia Dona Catarina. Pedro não virou policial, mas não voltou para casa após a madrugada do dia 12 de novembro de 2015.

Parte III - Fim

 

Na noite do dia 11, o rapaz saiu de casa. Como de costume, visitou amigos e  parou na casa do vizinho Paulo Filho para conferir um novo jogo de celular. Sentaram-se na calçada e jogaram até serem surpreendidos por uma abordagem repentina de homens encapuzados que perguntavam incessantemente: “Cadê ele?”. A chegada dos mascarados à casa veio carregada de violência: os garotos foram cruelmente espancados. Pedro teve a carteira e o celular roubados e fora atingido enquanto tentava fugir para casa por balas de fogo na costela, no braço e na barriga, além de dois tiros no pulmão,.

 

“Mãe, me ajuda. Eu levei um tiro!”, gritou o jovem pela Rua Tomás de Oliveira, até despertar Dona Catarina. Ao abrir a porta de casa, a mãe encontrou Pedro deitado no jardim e, de imediato, correu para acudi-lo. O bairro estava cercado por atiradores. Graças à ajuda do vizinho, Pastor Paulo, pai de Paulo Filho – também baleado na abordagem – , Catarina conseguiu levar Pedro ao hospital. Em um Fiorino branco conduzido pelo pastor, o corpo de Pedro dividiu espaço com mais dois jovens feridos, a mãe e o irmão Lucas.

 

Na tentativa de quebrar a barreira criada pelos atiradores na saída do Conjunto Curió, acabaram sendo parados por homens mascarados em meio à correria. “Você responde a alguma coisa? Deve alguma coisa?”, os atiradores perguntaram a Lucas, ao perceber que o garoto estava descalços e sem camisa. Um dos mascarados puxou os pés de Pedro, que já estava morto, e perguntou: “Esse aí foi o que fugiu?”.

 

A situação toda era inacreditável. Talvez, se fosse algo visto no noticiário, Catarina pudesse até entender como possível, porém ainda distante da própria realidade. Após perder mais um filho de forma tão injusta e repentina, a mente da mulher mal foi capaz de reagir à agressão que partia dos homens encapuzados. “Eu congelei. Eu fiquei paralisada”. Após o interrogatório e as tentativas de espancar os rapazes no carro, o Fiorino branco foi liberado para seguir rumo ao hospital.

 

Ainda na madrugada, conseguiram chegar ao pronto-socorro. A mobilização foi geral. Por volta das 02h30, após o óbito do filho ser declarado, Dona Catarina deparou-se com os rapazes mascarados dentro do hospital. “Eram três policiais. Dois com a cara coberta, um não. Todos três fardados, fora os que já estavam à paisana. Eles eram muitos. Eu me tremia da cabeça aos pés”. Os policiais encapuzados fotografaram Pedro durante as longas horas em que esteve no hospital, ainda na companhia de Lucas. Em meio ao caos e a dor de estar prestes a sepultar mais um filho no ano de 2015, Catarina recorreu à religião.

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Eu me agarrei a Deus e, graças a Ele, a gente conseguiu amanhecer o dia em paz apesar de tudo. Táxi nenhum tirava a gente de lá. (...) Eu tive que esperar amanhecer o dia. Um verdadeiro suplício, tudo aquilo o que eu passei e ainda venho passando.

 

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Após perder os dois irmãos no mesmo ano, Lucas passou a se afastar da família. Já não estudava desde 2014, após o diagnóstico de Neto, e pôs-se a se ocupar ajudando Catarina no Mercado. Trinta dias após a morte de Pedro, o mais novo saiu de casa às 16h e, às 00h, ainda não havia chegado em casa, tampouco atendia às chamadas telefônicas desesperadas da mãe. Completamente aterrorizada com a ideia de ter perdido mais um filho, Dona Catarina passou a entrar em contato com amigos do garoto até que o encontrou na praia, às 00h30, admirando o mar. Ao perceber o transtorno que tinha causado à mãe, Lucas se justificou: “Eu queria apenas dar uma sossegada”.

 

Enquanto Luiza tinha para si um pequeno quarto individual, Lucas dividia um quarto, maior que o dos pais, com Neto e Pedro. Foi nas paredes desse cômodo que os garotos pintaram, em 2014, um grande painel com a palavra “paz”. Depois do ocorrido com os irmãos, Lucas convidou alguns amigos para ajudá-lo a reformar o painel, acrescentando tons de azul.

 

Lucas escolheu se afastar, Luiza perdeu-se nas mágoas que lhe assombram os pensamentos. Aos 16 anos, a menina procura seguir carreira como modelo e frequenta cursos para que seu sonho se concretize. Mas manter a concentração durante as sessões de fotografia e outras tarefas do curso tem se tornado um grande desafio. Por vezes,

Luiza procura se esconder para não chamar a atenção daqueles que conhecem a história de suas perdas. Com os filhos emocionalmente fragilizados e o marido com a saúde instável, é Catarina quem tem segurado as pontas em casa desde então. Tendo enterrado a mãe e dois filhos em pouco mais de um ano, ela leva uma rotina tão ocupada, que, às vezes, acredita levar uma vida normal.

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Não que a saudade não exista, mas a gente tem que continuar, né? Eu vejo algumas mães de outras vítimas, todo mês tem reunião na Defensoria, e até hoje essas mães choram. Choram, e eu fico olhando e me questionando ‘Meu Deus, será que eu não sou normal?’ Porque eu acho assim, é muito tempo pra continuar chorando. Eu também não tive essa oportunidade. Naquela noite, eu fiquei sem saber o que estava acontecendo, por quê estava acontecendo. E no outro dia eu tinha que agir. (...) Eu sempre digo: lágrima não paga conta, a não ser que seja lágrima de atriz. Cada um reage à sua maneira, cada um tem um jeito diferente de ser.

–  Catarina Cavalcante

 

 

Na madrugada do dia 12 de novembro, morreu Pedro Alcântara, junto com outras dez histórias mal contadas. Entretanto, o rolo do filme de Catarina continuou a rodar no projetor. Cenas de uma mãe que se viu obrigada a manter-se firme e seguir em frente, mas que deixa algumas lágrimas caírem quando as câmeras não estão filmando.

Os muros da Escola Terezinha Ferreira Parente (foto) agora estão repletos de “Pêêh”, apelido de Pedro.

Bárbara Barroso e Ingrid Oliveira

Na foto, a caixa percussiva que fora encomendada para Pedro, mas que chegou à escola apenas após a morte do rapaz.

“Ó o jeito! Ele sempre falava essa frase. Qualquer brincadeira era 'ó o jeito'”. A gente ficou com isso na cabeça.” Foto: Joel Pinheiro

Painel no quarto dos filhos de Catarina Cavalcante

Pedro (à direita) e amigos em evento da prefeitura de Fortaleza.

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