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Periferia. O termo geralmente é utilizado para designar espaços que estão distantes do centro e à margem da área urbanizada. Numa visão mais sociológica, a periferia é o local onde a força de trabalho se reproduz em péssimas condições de habitação. Para o pós doutor da PUC e estudioso do assunto, Anselmo Shörner, existe uma classificação das pessoas a partir do espaço que elas ocupam, ou ainda, a partir das referências ao espaço de onde procedem. Assim, periferia e ser humano se confundem. Bairros ou cidades onde divisões do tempo e do espaço não estão claras e rigorosamente determinadas, acabam representando, em seu espaço, uma condição marginal. Anselmo conclui então que: se o lugar é marginal, conseqüentemente aqueles que ali vivem são associados por tal imagem.

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E foi na periferia de Fortaleza, no bairro Alagadiço Novo, área da grande Messejana, que o jovem Patrício João Pinho Leite permaneceu enquanto pôde.   Naquela noite de 12 de novembro de 2015, Patrício rompeu com tudo (ou nada) que tinha. Foi obrigado a deixar para trás a mãe e as irmãs. Era um adeus, um ponto final numa biografia tão curta. Aos 16 anos, Patrício tornou-se a vítima mais jovem da lista de 11 mortos na Chacina da Grande Messejana.

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A morte de um jovem da periferia não chama atenção, a não ser que ela faça parte de uma tragédia. Discursos parecidos ecoam após casos como este: “ele podia ser criminoso”, “infelizmente estava no lugar errado na hora errada”. A simples condição de morador da periferia levantou suspeitas sobre Patrício:  a premissa de que local e pessoa se confundem, aconteceu. Durante os poucos anos em que esteve vivo, ele resistiu, trilhando um caminho discreto. Não era criminoso, não tinha passagem pela polícia, nem histórico de confusões. Mesmo assim, Patricio percorreu uma estrada sem saída.

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Os detalhes da vida e rotina do jovem são compartilhados pela mãe, dona Francisca, moradora da periferia, onde criou mais dois filhos, além de Patrício. “Ele nasceu e se criou aqui”, conta a dona de casa enquanto caminha pela ruas onde Patrício foi feliz. Os passos apertados da pequena mulher levam a um lugar cheio de caminhos, becos e vielas. Estávamos no coração daquela periferia: nas calçadas, olhares atentos eram lançados a quem não pertence àquele local. No chão de terra batida, o esgoto corre. Ao redor, as casas simples denunciam a vida modesta de quem possivelmente não teve opção de escolha para erguer moradia em um lugar da cidade com melhor infraestrutura.

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Dos três filhos, Patrício era o caçula e companheiro da mãe. Apesar da criminalidade rondar o seu cotidiano, o jovem tinha receio em fazer parte disso e nunca demonstrou o mínimo interesse e coragem em se envolver com “coisa errada”. Quem confirma é Francisca e Penélope, irmã do rapaz. “Medroso demais”, relembram. Sair de casa, só se fosse na companhia da mãe ou dos amigos. A insegurança era tamanha que lhe acompanhava até no escuro: precisava de um ponto de luz para dormir. O medo era um sentimento compartilhado também por  Francisca, que lutou como pôde para que o filho não encontrasse o crime.

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Sem Saída

Ana Luiza Soares e Isaac de Oliveira

Patrício gostava mesmo era de futebol. Chegava a jogar durante horas com os colegas do bairro.  Tinha o sonho mais comum dos jovens da periferia: ser jogador. Assim como acontece com tantos outros adolescentes marginalizados, o sonho de Patrício ficou sublimado frente à realidade que o envolvia. No lugar onde morava, a flexão dos verbos estudar e trabalhar utiliza outras formas de tempo, modo, pessoa e número. O jovem largou os estudos na 3ª série do ensino fundamental. Para a mãe, os constantes confrontos entre gangues de comunidades vizinhas foi determinante para o abandono das salas de aula. O garoto passou a fazer parte da chamada geração “nem-nem” - jovens entre 15 e 29 anos que nem estudam, nem trabalham. Esta que, em 2014, era a realidade de 9,8 milhões de brasileiros, segundo levantamento do Instituto Ayrton Senna.

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Na verdade, Patrício não queria virar advogado, não queria ser médico, nem professor. Mesmo sem ter plena consciência, Patrício só queria viver. E sem saber, ele resistia. Resistir, inclusive, era uma palavra que definia bem o sentido de sua curta vida. Talvez nem soubesse que era isso que fazia diariamente, pois, apesar de toda uma cultura que se desenvolve em um bairro carente, a vivência na periferia é, sobremaneira, um desafio deveras hostil.

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Patrício não voltou a estudar. Ocupava os dias jogando futebol em um campo atrás de sua casa. Atuava na posição de atacante e tinha habilidade. Chegou a se matricular na Vila Olímpica de Messejana, um centro de esporte e outras práticas culturais. A mãe planejou matriculá-lo de volta na escola, já que “pra ser jogador tem que estudar”. Mas não deu tempo. Nas entrelinhas, sabia que a chance dele morrer naquele lugar era real e o manteve perto o máximo que pôde, tentando adiar esse dia. Só não imaginava que seria como aconteceu. “Eu confiava nos policiais”, lamenta.

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No traumático dia 12, Francisca estava em casa quando ouviu os tiros. Havia adormecido à espera de Patrício. Não sabia que dessa vez a bala tinha sido para ele. Tinha que torcer para que não fosse, assim como todas as vezes. Então ela saiu de casa, com um misto de medo e apreensão. Na rua, encontrou o filho agonizando. Patrício costumava perguntar à mãe se ela choraria caso ele morresse, mas Francisca sempre desviava da questão feita em tom de graça. Se foi uma resposta do destino ou não, a vida o respondeu: Patrício teve a companhia da mãe em seus últimos instantes de vida.  Ela, enfim, deu a resposta que o filho tanto pediu. Chorou segurando o corpo de Patrício, morto pela força policial. Com o sangue correndo pelo chão e misturando-se ao esgoto que corria na viela, dona Francisca teve a certeza que jamais ganharia essa guerra.

Rua do bairro São Miguel, onde Patrício vivia.

O jovem Patrício em momento de descontração. A foto foi tirada meses antes do assassinato. Foto: arquivo pessoal

Arte em memória aos onze mortos da Chacina de Messejana. O desenho é uma obra do artista Rafael Limaverde.

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